terça-feira, 7 de agosto de 2012

O HORROR DE SALEM


Henry Kuttner
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.




Quando Carson chegou a notar os sons em seu sótão, culpou os ratos. Mais tarde, começou a ouvir as histórias sussurradas pelos supersticiosos moeiros poloneses da Rua Derby, que falavam da primeira ocupante da casa antiga, Abigail Prinn. Não há ninguém vivo hoje que possa lembrar-se da diabólica velha, mas as mórbidas lendas que pululam no “distrito das bruxas” de Salem, como ervas daninhas ou covas negligenciadas, mencionam particularidades perturbadoras de suas atividades, e eram desagradavelmente explícitas quanto aos detestáveis sacrifícios que sabe-se que ela ofertou a uma imagem de chifres crescentes, degradada pelos vermes e de origem incerta. Os mais velhos ainda sussurram sobre Abbie Prinn e suas monstruosas gabolices de que era alta sacerdotisa de um deus horrivelmente potente, que habitava nas profundezas sob as colinas. De fato, foram as gabolices incansáveis das velha bruxa que a levaram a sua abrupta e misteriosa morte em 1692, por volta da época dos famosos enforcamentos de Gallows Hill. Ninguém gosta de falar sobre o assunto, mas de vez em quando alguma velha desdentada resmunga temerosa, falando sobre as chamas que não queimavam a bruxa, pois todo o seu corpo havia sido tomado pela peculiar anestesia de sua marca diabólica.

Abbie Prinn e sua estátua anômala há muito desapareceram, mas ainda ficou difícil encontrar quem alugasse sua casa decrépita e de frontão triangular, com seu segundo andar quase caído e curiosas janelas de caixilho em formato de diamante. A notoriedade maligna da casa espalhou-se por toda Salem. Nada de fato havia acontecido lá, nos anos recentes, que pudesse dar margem a histórias inexplicáveis, mas aqueles que alugavam a casa tinham o hábito de sair dali com rapidez, geralmente explicando de maneira vaga e insatisfatória sobre a questão dos ratos.


E foi um rato que levou Carson ao Quarto da Bruxa. O padrão abafado e rangente dentro das paredes apodrecidas havia perturbado Carson mais de uma vez, durante as noites de sua primeira semana na casa, que havia alugado para obter a solidão que o permitiria completar um romance pedido pelos seus editores – outro romance leve a ser adicionado à sua longa cadeia de sucessos populares. Mas não foi senão até algo mais tarde, que certa noite começou a conjeturar de maneira fantástica sobre a inteligência daquele rato, que fazia ruídos sob seus pés, no escuro do corredor.

A casa havia recebido fiação elétrica, mas o bulbo no corredor era pequeno e gerava apenas uma luz tênue. O rato era uma sombra deformada e negra que se lançava alguns metros para a frente e então pausava, aparentemente observando Carson.

Em qualquer outro momento, Carson teria enxotado o animal com um gesto ameaçador e voltado a trabalhar. Mas o tráfego na Rua Derby estivera incomumente barulhento, e ele achava difícil concentrar-se no romance. Seus nervos, sem nenhuma razão aparente, estavam tensos; e de alguma forma ele sentia que o rato, observando-o logo além de seu alcance, estava fitando-o de modo divertido e sardônico.

Sorrindo com a ideia, aproximou-se alguns passos do rato, e este saiu correndo para a porta do sótão, que para sua surpresa, estava entreaberta. Pensou que deveria ter deixado de fechá-la da última vez que subira até lá, embora geralmente tomasse cuidado em manter as portas fechadas, pois a velha casa era bem fria. O rato esperava na soleira da porta.

Irracionalmente aborrecido com o fato, Carson deu um carreirão no rato, que subiu pela escada. Ligou então a luz do porão e observou o rato, que estava num canto. O animal observava com toda a atenção de seus olhos pequenos e brilhantes.

Ao descer as escadas, não conseguiu evitar sentir que estava agindo feito idiota. Mas seu trabalho estava cansativo, e seu subconsciente acolheria qualquer interrupção. Moveu-se pelo porão em direção ao rato, percebendo que, para seu espanto, a criatura permanecia imóvel, fitando-o. Uma estranha sensação de incerteza começou a crescer dentro de Carson. O rato estava agindo anormalmente, era isto que sentia; e o fitar de seus olhinhos frios, que nunca piscavam, era de certa forma perturbador.

Mas caiu na risada, pois o rato de súbito virou para o lado e desapareceu num pequeno buraco da parede do porão. Com uma certa preguiça, riscou com o dedão do pé uma cruz sobre a poeira diante da toca, decidindo que poria ali uma armadilha quando viesse a manhã.

O focinho e os bigodes irregulares do rato surgiram de maneira cautelosa. Ele movia-se para a frente e então hesitava, voltando. O animal começava então a agir de maneira singular e indescritível – como se estivesse dançando, pensou Carson. Movia-se de maneira tateante para frente, e então retrocedia. Um pequeno salto para a frente, aparecendo rapidamente, e então pulava de volta com rapidez, como se – a comparação passou pela mente de Carson – uma cobra estivesse enrodilhada diante da toca, alerta para impedir a fuga do rato. Mas não havia nada ali, salvo a pequena cruz que Carson havia riscado no pó.


Sem dúvida, era o próprio Carson que bloqueava a fuga do rato, pois estava em pé a menos de um metro da toca. Moveu-se para a frente, e o animal celeremente saía de vista.

Interessado, Carson encontrou um pedaço de pau e com ele cutucou o buraco, explorando-o. Também prestou atenção próximo à parede, detectando algo estranho na laje de pedra logo acima da toca de rato. Uma rápida olhadela confirmou suas suspeitas. A laje aparentemente era móvel.

Carson a examinou de perto, notando uma depressão em sua borda, onde podia caber uma mão. Seus dedos se encaixavam com facilidade na cavidade, e ele puxou com cuidado. A pedra moveu-se um pouco e parou. Puxou com mais força, e num espirrar de terra seca a laje destacou-se da parede, como se presa a uma dobradiça.

Um retângulo negro, da altura de seu ombro, abria-se na parede. De suas profundezas emanou um fedor úmido e desagradável de ar viciado, fazendo Carson dar um passo para trás, involuntariamente. De repente lembrou-se das monstruosas histórias sobre Abbie Prinn e os horrendo segredos que supostamente ela teria ocultado em sua casa. Teria ele encontrado um refúgio escondido de uma bruxa há muito tempo morta?

Antes de entrar pela passagem sombria, tomou a precaução de pegar uma lanterna lá em cima. Então baixou a cabeça com cuidado e caminhou por aquela passagem estreita e de odor maligno, sondando com o facho de luz da lanterna.

Estava num túnel estreito, pouco mais alto que sua cabeça, murado com lajes de pedra. Prolongava-se por talvez cinco metros e então abria-se numa grande alcova. Conforme Carson adentrava o aposento subterrâneo – sem dúvida um refúgio oculto de Abbie Prinn, um esconderijo, pensou, que mesmo assim não pôde salvá-la no dia em que a multidão louca de medo entrou em fúria e a arrastou pela Rua Derby – segurou o fôlego, engasgado de assombro. O aposento era fanástico, surpreendente.

Era o chão que capturava o olhar de Carson. O cinza morto da parede circular dava lugar aqui a um mosaico de pedras de múltiplas cores, nas quais predominavam azuis, verdes e púrpuras – de fato, não eram vistas nenhuma das cores mais quentes. Deviam haver milhares de fragmentos de pedra compondo aquele padrão, pois nenhum deles era maior que uma noz. E o mosaico parecia seguir algum padrão definido, desconhecido para Carson; haviam curvas de púrpura e violeta mesclados a linhas angulosas de verde e azul, entrelaçadas a arabescos fantásticos. Haviam círculos, triângulos, um pentagrama, e outras figuras menos familiares. A maioria das linhas e figuras irradiavam-se a partir de um ponto definido: o centro da câmara, onde havia um disco circular de pedra negra e morta, talvez de meio metro de diâmetro.


Estava tudo muito silencioso. Os sons dos carros que ocasionalmente passavam lá na Rua Derby não podiam ser ouvidos. Numa pequena alcova da parede Carson vislumbrou marcas nas paredes, e moveu-se lentamente naquela direção, o facho de luz viajando para cima e para baixo, nas paredes do nicho.

Aas marcas, o que quer que fossem, foram emplastadas na pedra há muito tempo, pois o que restava dos símbolos enigmáticos era indecifrável. Carson viu vários hieroglifos parcialmente apagados, que a ele lembraram árabe, mas não tinha muita certeza. No chão da alcova, um disco de metal corroído, de cerca de dois metros e quarenta de diâmetro, e Carson teve a impressão nítida de que era móvel. Mas não parecia haver maneira de levantá-lo.

Ficou consciente de que estava no centro exato da câmara, no círculo de pedra negra onde centrava-se o estranho padrão. Mais uma vez, notou o silêncio total. Seguindo um impulso, desligou o facho da lanterna. Instantaneamente, estava na escuridão total.

Naquele momento, uma curiosa ideia entrou em sua mente. Viu-se no fundo de um poço, e de cima descia um dilúvio, descendo pela coluna para engoli-lo. A impressão era tão forte que chegou a imaginar que ouvia uma trovoada abafada, o rugido da catarata. Estranhamente abalado, ligou a luz, olhando ao redor com presteza. O ressoar, é claro, era o pulsar de seu próprio sangue, tornado audível no silêncio completo – um fenômeno familiar. Mas, se o lugar era tão quieto – 

O pensamento saltou em sua mente, como se subitamente empurrado em sua consciência. Este seria um lugar ideal para trabalhar. Poderia puxar uma fiação elétrica, descer uma mesa e uma cadeira, usar um ventilador elétrico se necessário – embora o odor úmido que notou a princípio houvesse desaparecido por completo. Moveu-se pela boca do túnel, e ao sair do aposento sentiu uma inexplicável sensação de relaxamento dos músculos, embora não houvesse percebido antes que estavam contraídos. Atribuiu o fato ao seu nervosismo, e subiu as escadas para fazer um pouco de café preto e escrever a seu senhorio em Boston sobre a descoberta.



O visitante fitou curioso o corredor, assim que Carson abriu a porta, balançando a cabeça consigo mesmo, como se satisfeito. Era uma figura alta e magra, com sobrancelhas de cinza férreo sobre olhos igualmente cinzentos, e aguçados. Seu rosto, embora esquálido e cheio de marcas, não mostrava rugas.

“É sobre o Quarto da Bruxa, eu presumo?” Carson falou sem muitos modos. Seu senhorio havia sido indiscreto, e durante a última semana ele for forçado a entreter antiquários e ocultistas ansiosos em dar uma olhada na câmara secreta onde Abbie Prinn murmurava seus feitiços. O incômodo de Carson cresceu, e ele considerou mudar-se para um lugar mais quieto; mas sua teimosia inerente o fez permanecer, determinado a terminar seu romance a despeito das interrupções. E agora, observando friamente seu convidado, disse, “Desculpe, mas não está mais em exposição.”

O outro pareceu atônito, mas quase imediatamente, um raio de compreensão luziu em seus olhos. Tirou um cartão e ofereceu-o a Carson.

“Michael Leigh... ocultista, é?” Repetiu Carson. Suspirou fundo. Os ocultistas, ele havia descoberto, eram os piores, com suas alusões sombrias a coisas inomináveis e seu profundo interesse no padrão do mosaico no chão do Quarto da Bruxa. “Desculpe, sr. Leigh, mas – eu realmente estou bastante ocupado. Há de perdoar.”

Sem modos, voltou-se para a porta.

“Só um momento,” Leigh falou com rapidez.

Antes que Carson pudesse protestar, o homem pegou o escritor pelos ombros e fitou profundamente seus olhos. Atarantado, Carson recuou, mas não antes de perceber uma extraordinária expressão de apreensão e satisfação misturadas no rosto magro de Leigh. Era como se o ocultista houvesse visto algo desagradável, mas não inesperado.

“Qual é o caso?” Carson perguntou com rudeza. “Não estou acostumado – ”

“Desculpe-me, por favor,” disse Leigh. Sua voz era profunda e agradável. “Devo pedir perdão. Pensei – bem, mais uma vez peço perdão. Estava bastante empolgado, sabe. Vim de San Francisco para ver esse seu Quarto da Bruxa. Será que se importaria de me deixar vê-lo? Eu ficaria feliz em pagar qualquer soma – ”

Carson fez um gesto depreciador.

“Não,” ele disse, sentindo uma apreciação perversa pelo homem crescer dentro de si – sua voz bem modulada e agradável, seu rosto poderoso, sua personalidade magnética. “Não, eu só quero um pouco de paz – o senhor não tem ideia do quanto eu fui incomodado,” continuou, vagamente surpreso de achar-se falando em tom de desculpas. “É um aborrecimento assustador. Quisera eu nunca ter encontrado o quarto.”

Leigh avançou ansioso. “Será que eu poderia vê-lo? Significa muito para mim – tenho um interesse vital nesse tipo de coisa. Prometo não tomar mais de dez minutos do seu tempo.”

Carson hesitou e então assentiu. Levando seu convidado ao porão, achou-se contando as circunstâncias de sua descoberta do Quarto da Bruxa. Leigh ouviu com atenção, de vez em quando interrompendo com perguntas.

“O rato – o senhor sabe o que aconteceu com ele depois?” perguntou.

Carson olhou o homem com ironia. “Não, não... acho que deve ter se escondido na toca. Por quê?”

“Nunca se sabe,” disse Leigh enigmático, ao entrarem no Quarto da Bruxa.


Carson ligou a luz. Havia instalado uma extensão elétrica, e havia agora ali umas cadeiras e uma mesa, mas fora isso, o aposento estava intocado. Carson observou o rosto do ocultista, e com surpresa viu que o rosto entristecer e ficar quase raivoso.

Leigh andou até o centro do aposento, fitando a cadeira que ficava no círculo de pedra negro.

“O senhor está trabalhando aqui?” perguntou com vagar.

“Sim. É silencioso – descobri que não conseguia trabalhar lá em cima. Barulho demais. Mas aqui é ideal – de alguma forma, eu descobri que é bem fácil escrever aqui. Minha mente sente-se...” hesitou, “livre; isto é, desassociada de outras coisas. É uma sensação bem incomum.”

Leigh assentiu, como se as palavras de Carson houvessem confirmado alguma ideia em sua própria mente. Voltou-se para a alcova e seu disco de metal no chão. Carson seguiu o homem. O ocultista moveu-se perto da parede, traçando os símbolos gastos com um indicador longo. Resmungou algo ao respirar – palavras que pareceram sem sentido para Carson.

“Nyogtha... k'yarnak...”

Virou-se então, seu rosto amargo e pálido. “Já vi o suficiente,” disse com delicadeza. “Podemos ir, então?” Surpreso, Carson assentiu e o levou de volta ao porão.

Subindo as escadas, Leigh hesitou, como se achasse difícil abordar algum assunto. Finalmente perguntou, “Sr. Carson – importaria-se de me dizer se teve algum sonho peculiar, recentemente?”

Carson fitou-o de volta, a ironia dançando nos olhos. “Sonhos?” repetiu. “Ah – entendo. Bem, sr. Leigh, posso adiantar que o senhor não vai conseguir me assustar. Seus compatriotas – os outros ocultistas com quem lidei – já tentaram isso.”

Leigh levantou as sobrancelhas espessas. “Sim? Eles quiseram saber o que o senhor anda sonhando?”

“Vários perguntaram – então, sim.”

“E o senhor contou a eles?”

“Não.” E então, quando Leigh voltou a sentar em sua cadeira, uma expressão confusa no rosto, Carson hesitou, “Embora, na verdade, eu não tenha tanta certeza.”

“O que o senhor quer dizer?”

“Acho – tenho uma vaga impressão – de que andei sonhando ultimamente. Mas não tenho certeza. Não consigo lembrar nada do sonho, sabe. E – oh, com toda certeza seus irmãos ocultistas colocaram a ideia em minha cabeça!”

“Talvez,” disse Leigh, sem comprometer-se, levantando. Hesitou. “Sr. Carson, farei ao senhor uma pergunta um tanto presunçosa. É necessário mesmo que o senhor more nesta casa?”


Carson suspirou resignado. “Quando me perguntaram isso da primeira vez, expliquei que queria um lugar quieto onde escrever um romance, e que qualquer lugar quieto seria suficiente. Mas não é algo fácil de achar. Agora que tenho este Quarto da Bruxa, meu trabalho está saindo tão facilmente, que não vejo razão pela qual sairia daqui, talvez prejudicando meu cronograma. Eu sairei desta casa quando terminar o romance, e então vocês ocultistas podem vir e transformá-la num museu ou algo parecido. Não me importo. Mas até que o romance esteja terminado, tenciono permanecer aqui.”

Leigh segurou o próprio queixo. “De fato. Posso compreender seu ponto de vista. Mas – há outro lugar na casa onde o senhor possa trabalhar?” 

Observou o rosto de Carson por um momento, e então rapidamente prosseguiu falando.

“Não espero que acredite em mim. O senhor é um materialista. A maioria das pessoas é materialista. Mas alguns poucos de nós sabem que acima e além do que os homens chamam de ciência, há uma ciência superna, construída sobre leis e princípios os quais o homem comum acharia quase incompreensíveis. Se o senhor já leu Machen, lembrará que ele fala de um abismo entre o mundo da consciência e o mundo da matéria. É possível sobrepujar esse abismo. O Quarto da Bruxa é uma maneira de fazê-lo, uma ponte! O senhor sabe o que é um Ouvido de Dionísio?”

“Hum?” disse Carson, fitando o homem. “Mas não há – ”

“Uma analogia – apenas uma analogia. Um homem pode sussurrar uma palavra numa galeria – ou caverna – e se o senhor estiver num certo ponto a trinta metros de distância, irá ouvir esse sussurro, embora alguém a três metros não consiga. É um simples truque de acústica – trazer o som a um ponto focal. E este princípio pode ser aplicado a outras coisas além do som. A qualquer impulso emitido através de ondas – e até mesmo ao pensamento!”

Carson tentou interromper, mas Leigh continuou falando.

“Aquela pedra negra no centro de seu Quarto da Bruxa é um desses pontos focais. Os padrões no chão – quando o senhor senta no círculo negro, fica anormalmente sensível a certas vibrações – certos comandos mentais – perigosamente sensível! Como acha que sua mente fica tão clara quando está trabalhando aqui? É uma armadilha, uma falsa sensação de lucidez – já que o senhor não passa de um instrumento, um microfone, sintonizado de modo a captar certas vibrações malignas, cuja natureza o senhor não pode compreender!”

O rosto de Carson era uma demonstração de surpresa e incredulidade. “Mas – você não acredita mesmo nessas – ”

Leigh recuou, a intensidade de seus olhos morrendo, deixando-os tristonhos e frios. “Muito bem. Mas eu estudei a história da sua Abigail Prinn. Ela também compreendia a superciência da qual estou falando. Ela a utilizava para propósitos malignos – a arte sombria, é como é chamada. O senhor – ” Levantou-se, mordendo a ponta dos lábios. “O senhor pelo menos irá me permitir que eu venha amanhã?”

Quase que involuntariamente, Carson assentiu. “Mas temo que o senhor esteja perdendo seu tempo. Não creio – isto é, não tenho como – “ Gaguejou, sem conseguir concatenar as palavras.

“Apenas quero assegurar-me que o senhor – oh, outra coisa. Se o senhor sonhar esta noite, por gentileza poderia tentar recordar-se do sonho? Se o senhor tentar lembrar logo que desperte, muitas vezes é possível recordar.”

“Tudo bem. Se eu sonhar – ”


Naquela noite, Carson sonhou. Despertou logo após o amanhecer, seu coração batendo furioso, sentindo uma inusitada inquietude. Dentro das paredes, e abaixo do chão, podia ouvir os ruídos furtivos dos ratos. Levantou da cama com rapidez, tremendo na luz cinzenta do começo de manhã. Uma lua minguante ainda brilhava tênue no céu pálido.

Lembrou-se então das palavras de Leigh. Havia sonhado – sem dúvida, havia sonhado. Mas o conteúdo do sonho – este estava bloqueado. Absolutamente não conseguia trazer o sonho à mente, por mais que tentasse, embora houvesse uma impressão bastante vaga de corrida frenética na escuridão.

Vestiu-se rapidamente, e já que a quietude da quase madrugada dentro da casa velha dava-lhe nos nervos, saiu para comprar um jornal. Era cedo demais para que houvessem bancas abertas, contudo, e buscando um dos garotos jornaleiros, dirigiu-se para oeste, virando na primeira esquina. Conforme andava, veio uma sensação curiosa e inexplicável tomar conta dele: uma sensação de – familiaridade! Ele havia andado ali antes, e havia uma vaga e perturbadora familiaridade quanto às formas das casas, os contornos dos telhados. Mas – e esta era a parte fantástica da coisa – que ele soubesse, nunca havia estado naquela rua antes. Havia passado pouco tempo andando naquela região de Salem, pois era preguiçoso por natureza; ainda assim havia aquela extraordinária sensação de recordação, que ficava cada vez mais vívida conforme andava.

Chegou a uma esquina, e virou decidido para a esquerda. A estranha sensação aumentou de intensidade. Caminhou lentamente, ponderando.

Sem dúvida, havia andado por aquela via antes – e muito provavelmente estava bastante pensativo na ocasião, de modo a não prestar atenção consciente à sua rota. Sem dúvida, esta deveria ser a explicação. Ainda assim, quando Carson virou para a Rua Charter, sentiu uma inquietude inominável tomar conta de si. Salem estava começando a despertar; com a luz do dia, impassivos operários polandeses começavam a marchar em direção às fábricas, passando direto por ele. Um automóvel ou outro passava de vez em quando.

Mais à frente uma multidão reunia-se numa calçada. Carson apressou o passo, consciente da sensação de calamidade iminente. Num choque extraordinário, viu que estava passando pelo Cemitério da Rua Charter, o antigo e malignamente famoso “Ponto Tumular.” Com pressa, empurrou as pessoas até chegar à multidão.

Chegavam comentários num tom abafado, e costas troncudas, num uniforme azul, impediram sua passagem. Ele olhou por cima do ombro do policial e engasgou, apavorado.

Um homem curvado sobre o corrimão que cercava o velho cemitério. Vestia um terno barato e espalhafatoso, e segurava as barras enferrujadas com tanta força que fazia seus músculos ficarem visíveis nos sulcos das costas cabeludas de suas mãos. Estava morto, e em seu rosto, fitando o céu num ângulo insano, via-se congelada uma exmpressão do mais abissal e completamente chocante horror. Seus olhos, onde viam-se apenas o branco, estavam arregalados de maneira hedionda; sua boca era um ricto distorcido e amargo.

Um homem, do lado de Carson, virou o rsto branco para seu lado. “Dá impressão de que foi assustado até a morte,” disse com a voz um tanto rouca. “Odiaria ter visto o que ele viu. Ugh – olha só esse rosto!”

Mecanicamente, Carson recuou alguns passos, sentindo um hálito gelado de coisas sem nome tomar conta de si. Esfregou os olhos, mas ainda via aquela face morta e contorcida insistindo em flutuar em seu campo de visão. Começou a refazer seus passos, trêmulo e abalado. Involuntariamente, seu olhar moveu-se para o lado, descansando nas tumbas e monumentos que pontuavam o velho cemitério. Ninguém fora enterrado ali por mais de um século, e as lápides manchadas de líquen, com suas caveiras aladas, querubins rechonchudos e urnas funerárias, pareciam exalar um miasma indefinível de antiguidade. O que havia assustado aquele homem até a morte?

Carson respirou fundo. Certo, o cadáver fora um espetáculo aterrador, mas ele não deveria permitir que a visão abalasse seus nervos. Não poderia permitir – seu romance sofreria com isso. Além disso, argumentou amargamente consigo mesmo, a questão era óbvia o suficiente, em sua explicação. O homem morto era aparentemente polonês, pertencente a um grupo de imigrantes que habitam próximo ao Porto de Salem. Passando pelo cemitério à noite, lugar onde lendas do sobrenatural ainda sobrevivem por quase três séculos, seus olhos bêbados devem ter dado realidade a fantasmas vagos de sua mente supersticiosa. Aqueles poloneses eram notoriamente instáveis em seu emocional, suscetíveis a histeria em massa e imaginações loucas. O grande Pânico dos Imigrantes de 1853, no qual três casas de bruxas foram queimadas até o chão, nasceu da declaração confusa e histérica de uma mulher que disse haver visto um misterioso estrangeiro, vestido de branco, “retirar o próprio rosto.” O que mais poderia se esperar de tais pessoas, pensou Carson?

Mesmo assim, permaneceu num estado de nervosismo, e não voltou para casa até a tardinha. Ao chegar, encontrou Leigh, o ocultista, esperando, e ficou grato em ver o homem, convidando-o cordialmente para entrar.

Leigh parecia bastante sério. “Ouviu falar de sua amiga Abigail Prinn?” ele perguntou sem maiores preâmbulos, e Carson o fitou, pausando no ato de pôr água filtrada num copo. Após um longo momento, apertou a alavanca, deixando que o líquido chiasse e espumasse no uísque. Passou a Leigh o drinque e preparou um para si – uísque puro – antes de responder à pergunta.

“Não sei do que você está falando. Ela – o que ela tem feito ultimamente?” perguntou, num ar de leviandade forçada.

“Andei checando os registros,” disse Leigh, “e descobri que Abigain Prinn foi enterrada em 14 de dezembro de 1690, no Cemitério da Rua Charter – com uma estaca trespassando seu coração. E imagine só?”

“Não consigo.” Carson falou sem entonação. “E daí?”

“Daí que – bem, a sua tumba foi aberta e roubada, só isso. A estaca foi encontrada perto, e haviam muitas pegadas em volta. Pegadas de tênis. Você sonhou na última noite, Carson?” Leigh encaixou a pergunta, com os olhos cinzentos e duros.

“Não sei,” disse Carson confuso, esfregando a testa. “Não consigo lembrar. Estava no cemitério da Rua Charter esta manhã.”

“Oh. Então você deve ter ouvido falar sobre o homem que – ”

“Eu o vi,” interrompeu Carson, enquanto sentia um calafrio. “Fiquei abalado com aquilo.”

Engoliu o uísque num só gole.

Leigh ficou observando. “Bem,” disse então, “ainda está determinado a permanecer nesta casa?”

Carson colocou o copo na mesa e endireitou-se.

“Por que não?” descontrolou-se. “Há alguma razão pela qual eu não deva permanecer? Hein?” 

“Depois do que aconteceu na noite passada – ”

“Depois de ter acontecido o quê? Uma tumba foi roubada. Um polonês supersticioso viu os ladrões e morreu de medo. E daí?”

“Está tentando convencer a si mesmo,” disse Leigh com calma. “Em seu coração, o senhor sabe – o senhor deve saber da verdade. Tornou-se uma ferramenta nas mãos de forças terríveis, Carson. Por três séculos, Abbie Prinn esteve em sua cova – morta-viva – esperando que alguém caísse em sua armadilha – o Quarto da Bruxa. Talvez ela tenha previsto o futuro quando o construiu, pervisto que alguém algum dia encontraria aquela câmara infernal e seria pego na armadilha do padrão de mosaico. Armadilha que te pegou, Carson – e permitiu que aquele horror morto-vivo sobrepujasse o abismo entre consciência e matéria, entrando em contato com você. Hipnotismo é brincadeira de criança para um ser com os poderes assustadores de Abigail Prinn. Ela poderia muito bem forçar você a ir até aquela cova e retirar a estaca que a mantinha cativa, e então apagar a memória desse ato de sua mente, de modo que você não conseguisse lembrar disso, sequer como um sonho!”

Carson havia levantado, os olhos queimando com uma luz estranha. “Em nome de Deus, homem, você sabe de que diabos está falando?”


Leigh riu de maneira rude. “Nome de Deus! O nome do diabo, pode dizer – o diabo que ameaça Salem agora; pois Salem corre perigo, correr um terrível perigo. Os homens e mulheres e crianças da cidade que Abbie Prinn amaldiçoou quando foi presa à estaca – e descobriram que ela não podia ser queimada! Estava checando arquivos secretos esta manhã, e vim pedir a você, pela última vez, que deixe esta casa.”

“Terminou?” Carson perguntou com frieza. “Muito bem. Vou permanecer aqui. Você está insano, ou bêbado, e não conseguirá me impressionar com essa conversa fiada.”

“Deixaria a casa se eu oferecesse mil dólares?” perguntou Leigh. “Ou mais que isso, então – dez mil? Tenho bastante dinheiro em minhas reservas.

“Não, que coisa!” Carson descontrolou-se num surto repentino de raiva. “Tudo que eu quero é ser deixado em paz, sozinho, para terminar meu romance. Não consigo trabalhar em nenhum outro lugar – não quero trabalhar em outro lugar e não irei – ”

“Já esperava isso,” disse Leigh, a voz subitamente quieta, e numa estranha nota de simpatia. “Cara, você não consegue fugir! Está preso na armadilha, e é tarde demais para que você consiga se safar, enquanto Abbie Prinn controlar seu cérebro através do Quarto da Bruxa. E a pior parte do caso é que ela só pode manifestar-se com sua ajuda – ela drena sua forças vitais, Carson, alimenta-se de você como faria um vampiro.”

“Você está maluco,” disse Carson de maneira embotada.

“Eu estou é com medo. O disco de ferro no Quarto da Bruxa – estou com medo daquilo, e do que está debaixo daquilo. Abbie Prinn servia a estranhos deuses, Carson – e eu li algo naquela parede que me deu uma pista. Já ouviu falar de Nyogtha?”

Carson balançou a cabeça, impaciente. Leigh procurou num dos bolsos, e tirou um pedaço de papel. Copiei isto de um livro na Biblioteca Kester,” disse, “um livro chamado Necronomicon, escrito por um homem que esteve tão imerso nos segredos proibidos que era chamado de louco. Leia isto.”

As sobrancelhas de Carson foram unindo-se conforme ele lia o trecho:


Os homens o conhecem como o Habitante das Trevas, aquele irmão dos Antigos chamado Nyogtha, a Coisa que não deveria existir. Ele pode ser invocado à superfície da terra através de certas cavernas e fissuras secretas, e feiticeiros já o avistaram na Síria e abaixo da torre negra de Leng; do Grotão de Thang, na Tartária, ele veio frenético para trazer o terror e a destruição entre os pavilhões do grande Khan. Apenas através da cruz de voltas, do encantamento Vach-Viraj, e do elixir Tikkoun, Nyoghta pode ser expulso para as cavernas noturnas de asquerosidade oculta onde habita."


Leigh encontrou com calma o olhar confuso de Carson. “Pode compreender agora?”

“Encantamentos e elixires!” disse Carson, devolvendo o papel. “Mas que baboseira!”


“Longe disso. Esse encantamento e o elixir foram conhecidos de ocultistas e adeptos por milhares de anos. Tive oportunidade de usá-los no passado, em certas – ocasiões. E se estou certo quanto a essa coisa – ” Virou-se para a porta, os lábios compressos numa linha pálida. “Essas manifestações já foram derrotadas antes, mas a dificuldade está em obter o elixir – é muito difícil de conseguir. Mas eu tenho esperanças de que... Eu retornarei depois. Será que consegue manter-se fora do Quarto da Bruxa até que eu volte?”

“Não vou prometer nada,” disse Carson. Sentiu uma vaga dor de cabeça, que viera lentamente crescendo até que penetrasse totalmente em sua consciência, e ele sentiu-se um tanto nauseado. “Adeus.”

Conduziu Leigh até a porta e esperou nos degraus, estranhamente relutante em retornar à casa. Ao observar a figura alta do ocultista apressado pela rua, foi interrompido por uma mulher que saíra da casa ao lado. Ela viu Carson, e seus grandes seios inclinaram-se para a frente. Soltou então um berro raivoso e estridente.

Carson voltou-se para ela, fitando-a com olhos surpresos. Sua cabeça latejava dolorosamente. A mulher aproximou-se, balançando um punho gordo de maneira ameaçadora.

“Por que você assustou minha Sarah?” gritou a mulher, seu rosto moreno corado de raiva. “Por que a assustou com seus truques idiotas, hein?”

Carson umedeceu os lábios.

“Desculpe,” respondeu com bastante vagar. “Desculpe mesmo. Eu não assustei a sua Sarah. Estive em casa o dia todo. O que a assustou?”

“A coisa marrom – ela correu para sua casa, Sarah disse – ”

A mulher pausou então, e seu queixo caiu. Os olhos se arregalaram. Ela fez um sinal peculiar com a mão direita – apontando o indicador e o mindinho para Carson, com o polegar cruzado sobre os outros dedos. “A bruxa velha!”

Retirou-se com rapidez, murmurando em polonês, numa voz assustadiça.

Carson voltou-se e entrou na casa. Jogou algum uísque num copo, considerando o que havia acabado de acontecer, e então colocou o copo de lado, sem beber. Começou a vagar pela casa, de vez em quando esfregando a testa com dedos que pareciam secos e quentes. Pensamentos vagos e confusos passavam por sua mente. A cabeça latejava e parecia febril.

Finalmente, acabou descendo para o Quarto da Bruxa. Ficou ali, embora sem trabalhar; pois a dor de cabeça não era tão opressiva na quietude morta da câmara subterrânea. Depois de um tempo, acabou cochilando.

Quanto tempo passou dormindo, não conseguiu precisar. Sonhou com Salem, e com uma coisa negra e gelatinosa, que mal conseguia visualizar, e que varria as ruas com assustadora velocidade, uma coisa similar a uma ameba gigante e tão negra como o ônix, que perseguia e engolfava homens e mulheres que gritavam e tentavam fugir inutilmente. Sonhou com um rosto cadavérico observando o interior de sua mente, um semblante encanecido e murcho onde apenas os olhos pareciam vivos, brilhando com uma luz infernal e maligna.

Finalmente despertou, levantando-se num átimo. Sentia muito frio.


O silêncio era total. À luz do bulbo elétrico, o mosaico verde e púrpura parecia contorcer-se e contrair em sua direção, ilusão que desaparecia conforme a névoa do sono deixava de afetar sua visão. Deu uma olhadela no relógio de pulso. Duas da manhã. Havia dormido à tarde e acordado de madrugada.

Sentia-se estranhamente fraco, numa lassidão que o deixava imóvel na cadeira. Parecia que haviam drenado suas forças. O frio penetrante parecia atingir seu próprio cérebro, mas a dor de cabeça havia ido embora. Sua mente estava bastante clara – e era como se estivesse aguardando algo, na expectativa. Um movimento próximo chamou sua atenção.

Uma laje de pedra na parede estava se movendo. Ouviu um suave ruído de arrastamento, e lentamente, uma cavidade negra passou de estreito retângulo a um quadrado. Havia algo agachado ali, na escuridão. Um horror cego e evidente atingiu Carson, enquanto a coisa movia-se e arrastava-se para fora, na direção da luz.

Parecia uma múmia. Por um segundo que pareceu toda uma era intolerável, o pensamento atingiu, assustador, o cérebro de Carson: parecia uma múmia! Era um cadáver magro como um esqueleto, da cor marrom de pergaminho, parecia mesmo como se um esqueleto estivesse usando a pele de algum enorme lagarto, esticada sobre os ossos. A coisa estremeceu, rastejou para frente, e suas unhas longas roçaram de modo plenamente audível contra a pedra. Rastejou em direção ao Quarto da Bruxa, seu rosto sem emoções impiedosamente revelado na luz branca, seus olhos brilhando com a vida do além-túmulo. O escritor podia enxergar o espinhaço serrilhado que destacava-se das costas amarronzadas e encarquilhadas da coisa...

Carson ficou ali, imóvel. Um horror abissal havia roubado a capacidade de movimento. Parecia preso nos grilhões de uma paralisia de sono, na qual o cérebro, espectador indolente, não conseguia ou não queria transmitir os impulsos nervosos aos músculos. Tentou dizer a si mesmo, freneticamente, que estava sonhando, que precisava acordar.

O horror encarquilhado ergueu-se. Ficou de pé, magro como um esqueleto, e passou para a alcova onde o disco de ferro estava incrustado no chão. Dando as costas a Carson, a coisa parou, e um sussurro seco e raspado farfalhou por sobre o silêncio morto. Ao ouvir aquele som, Carson teria gritado, mas não conseguia. E assim continuou o macabro sussurro, numa linguagem que Carson sabia não pertencer à Terra, e como se reagindo àquele chamado, um tremor quase imperceptível agitou o disco de ferro.


O disco tremeu e começou a levantar-se, muito lentamente, e como se triunfante, o horror emaciado levantou seus braços, que eram esqueléticos como os tubos de uma gaita de foles. O disco havia se erguido quase trinta centímetros, mas continou a elevar-se acima do nível do chão, fazendo com que um odor insidioso começasse a penetrar o aposento. Era um odor vagamente reptiliano, almiscarado e nauseante. O disco erguia-se inexorável, e um pequeno dedo de negrume rastejou por debaixo dele. Carson lembrou-se abruptamente da criatura negra e gelatinosa, que varria as ruas de Salem. Tentou em vão quebrar os grilhões da paralisia que o mantia imóvel. A câmara estava ficando cada vez mais sombria, e uma vertigem negra ameaçava tomar o escritor. O aposento pareceu balançar. E ainda assim o disco de ferro erguia-se; e ainda assim o horror encarquilhado continuava com seus braços esqueléticos erguidos numa bênção blasfema; ainda assim o negrume vazava, num movimento lento de pseudópode.

E então um som quebrou a continuidade do sussurro raspante da múmia, o rápido tamborilar de passos que corriam. No canto periférico de sua visão, Carson viu um homem correndo em direção ao Quarto da Bruxa. Era Leigh, o ocultista, e seus olhos brilhavam em seu rosto de palidez mortal. Passou direto por Carson, para a alcova onde o horror negro assomava à vista.

A coisa encarquilhada virou-se com uma lentidão ameaçadora. Leigh carregava consigo algum implemento na mão esquerda, percebeu Carter, uma cruz ansata de ouro e marfim. Sua mão direita era apertada contra o torso. Haviam pequenas bolhas de suor em seu rosto branco.

"Ya na kadishtu nil gh'ri... stell'bsna kn'aa Nyogtha.... k'yarnak phlegethor..."

As sílabas fantásticas e alienígenas trovejaram, ecoando nas paredes da cripta. Leigh avançava com lentidão, erguendo alto a cruz ansata. E debaixo do disco de ferro, um horror negro espumou para fora!

O disco se levantou, foi jogado longe, e uma grande onda de negrume iridescente, nem líquido nem sólido, uma horrenda massa gelatinosa, começou a vazar na direção de Leigh. Sem pausar o avanço, ele fez um gesto rápido com a mão direita, e um pequeno tubo de vidro foi lançado contra a coisa negra, e engolido.

O horror disforme pausou. Hesitava, com um horrível ar de indecisão, e então rapidamente retrocedeu. Um fedor sufocante de corrupção cáustica começou a invadir o ar, e Carson viu que grandes pedaços da coisa negra se destacavam, desfazendo-se como se fossem sendo destruídos por um ácido corrosivo. A coisa fugia num espasmo liquescente, deixando para trás fragmentos de uma carne negra e macabra.

Um pseudópode de negrume alongou-se a partir da massa central e como um grande tentáculo, agarrou o ser cadavérico, arrastando-o para o poço para onde retornava e batendo-o nas bordas. Outro tentáculo agarrou o disco de ferro, puxou-o sem esforços pelo chão, e enquanto o horror desaparecia das vistas, o disco recolocava-se num estrondo trovejante.

O quarto rodava à volta de Carson, e uma náusea aterrorizante tomou conta do escritor. Fez um esforço tremendo para levantar-se, e então a luz se apagou com rapidez. A escuridão o possuiu.


O romance de Carson jamais foi terminado. Ele o queimou, mas continuou a escrever, embora nenhuma de suas obras recentes jamais tenha sido publicada. Os editores balançavam a cabeça e ficavam imaginando como um escritor tão brilhante de ficção popular havia tão subitamente se embrenhado no bizarro e no macabro.

“É bastante poderoso,” um deles disse a Carson, devolvendo seu romance, O Deus Negro da Loucura. “Notável à sua própria maneira, mas é mórbido e horrível. Ninguém o compraria. Carson, por que você não volta a escrever o tipo de romance que costumava, do tipo que o fez famoso?”

Foi então que Carson quebrou o voto de nunca mencionar o Quarto da Bruxa, e desabafou a história inteira, esperando compreensão e crença da parte do interlocutor. Mas ao terminar, seu coração afundou quando viu o rosto do outro, simpático mas cético.

“Você sonhou com tudo isso, não foi?” o homem perguntou, e Carson riu amargamente.

“Foi – eu sonhei tudo isso.”

“Deve ter gerado uma impressão terrivelmente vívida em sua mente. Alguns sonhos são assim. Mas você esquecerá isso quando for a hora,” preveu, ao que Carson assentiu.

Percebendo que isso apenas levantaria dúvidas quanto à sua sanidade, o escritor não mencionou a coisa que queimava, indelével, em seu cérebro, o horror que presenciara no Quarto da Bruxa ao despertar de seu desmaio. Antes que ele e Leigh saíssem com pressa da câmara, rostos pálidos e trêmulos, Carson deu uma olhada rápida para trás. Os fragmentos corroídos e encarquilhados que havia visto destacando-se daquele ser de blasfêmia insana haviam de fato desaparecido, embora tenham deixado manchas negras nas pedras. Abbie Prinn talvez houvesse retornado ao inferno que servia, e seu deus inumano retornara a abismos ocultos além da compreensão da humanidade, expulso pelas poderosas forças da magia ancestral que o ocultista dominava. Mas a bruxa havia deixado uma lembrança para trás, uma coisa horrenda que Carson, naquela última olhadela, viu saindo das bordas do disco de ferro, como se erguida numa saudação irônica – aquela mão atrofiada, como se fosse uma garra!









Originalmente publicado em maio de 1937 na revista WEIRD TALES.
Baixe aqui: http://pt.scribd.com/doc/102255847/O-Horror-de-Salem-Kuttner-Traducao-Arthur-Ferreira-Jr

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