domingo, 24 de junho de 2012

O RETORNO DE HASTUR - Partes III e IV

August Derleth
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.










III


Com isto, mudou abruptamente de assunto; começou a perguntar-me coisas sobre mim e meu escritório, e quando eu levantei, pediu-me para passar a noite ali. Isto finalmente consenti, e com alguma relutância, após o que ele saiu para preparar um aposento para mim. Tomei a oportunidade que se revelou para examinar sua mesa com mais vagar, buscando o Necronomicon que havia sumido da Universidade Miskatonic. Não estava em sua mesa, mas, passando às prateleiras, encontrei-o. Havia justamente tomado do livro para examiná-lo para ter certeza de sua identidade, quando Tuttle reentrou no aposentou. Seus olhos rápidos voltaram-se para o livro em minhas mãos, e ele fez um sorriso de canto de boca.


“Gostaria que você devolvesse isso ao dr. Llanfer, quando sair amanhã de manhã, Haddon,” falou casualmente. “Agora que copiei o texto, não tenho mais uso para ele.”


“Farei com gosto,” disse, alivado que a questão havia se resolvido com tamanha facilidade.


Logo após, retirei-me para o aposento no segundo andar, que ele havia preparado para mim. Paul acompanhou-me até a porta e então fez uma pausa rápida, incerto com alguma coisa na ponta da língua, que não permitia passar pelos lábios; pois virou-se uma ou duas vezes, deu-me boa-noite antes de falar aquilo que pesava em sua mente: “Por sinal – se ouvir alguma coisa de noite, não fique alarmado, Haddon. O que quer que seja, é inofensivo – ainda.”


Não foi senão até ele ter saído e eu ter ficado sozinho em meu quarto, que o significado do que ele falou, e a forma como ele o falara, ficaram claros. Veio-me a ideia de que esta era a confirmação dos rumores terríveis que haviam enchido Arkham, e que Tuttle comentara o assunto com uma ponta de medo. Despi-me vagarosa e pensativamente, sem desviar um só instante da preocupação com a estranha mitologia dos livros antigos de Amos Tuttle, que enchiam minha cabeça. Nunca fui de fazer julgamentos precipitados e certamente não os faria naquele momento; apesar do aparente absurdo da estrutura, era ainda assim suficientemente bem formulada, de modo a merecer mais que um escrutínio casual. E ficara claro para mim que Tuttle estava mais que meio convencido de sua verdade. Isto, por si só, me fez pensar, pois Paul Tuttle havia distinguido-se inúmeras vezes pela cabalidade de suas pesquisas, e seus artigos publicados não foram desafiados nem sequer nos menores detalhes. Como resultado de pesar estes fatos, estava preparado para admitir que pelo menos haveria alguma base para a estrutura mitológica que Tuttle me delineara, mas quanto à sua verdade ou falsidade, estava claro que, naquele momento eu estava em posição de comprometer-me, mesmo que guardasse isso apenas para mim; pois uma vez que um homem aceita ou condena algo em sua mente, é duplamente, não, triplamente difícil livrar-se de sua própria conclusão, por mais infeliz que ela subsequentemente prove ser.


Pensando nisso, fui para a cama, e nela deitei esperando o sono. A noite se aprofundou e escureceu, embora eu pudesse enxergar, através da tênue cortina na janela, que as estrelas estavam visíveis, Andrômeda alta no leste, e as constelações do outono começando a tomar o céu.


Estava no limiar do sono, quando fui desperto violentamente por um som que já estava audível há algum tempo, mas que só então chegara ao ponto de assolar-me com toda sua significância: o passo levemente trêmulo de alguma criatura gigantesca, vibrando por toda a casa, embora o som não viesse de dentro da casa, mas do leste, e por um momento confuso pensei em algo levantando-se do mar, e andando pela praia, sobre a areia molhada.


Mas esta ilusão passou quando ergui-me pelos cotovelos e ouvi com mais atenção. Por um momento, não ouvi som algum; e então veio novamente, irregular, quebrado – um passo, uma pausa, dois passos em rápida sucessão, um estranho ruído de sucção. Perturbado, levantei de vez e fui à janela aberta. A noite estava quente, e o ar parado, quase opressivo; bem longe, ao nordeste, um raio cortava um arco sobre o céu, e do norte distante vinha o zumbido leve de de um avião noturno. Já passava da meia-noite; baixas no leste, brilhavam a vermelha Aldebarã e as Plêiades, mas naquele momento, ao contrário de depois, não conectei os distúrbios que ouvi com a aparição da Híades sobre o horizonte.


Enquanto isso os estranhos sons continuavam sem cessar, e ocorreu-me que, naquele momento, estavam de fato se aproximando da casa, embora com progresso lento. E vinham da direção do mar, sem dúvida, pois naquele local não haviam configurações de terra que pudessem desviar o foco direcional dos sons. Comecei a pensar novamente naqueles sons parecidos, que ouvi quando o corpo de Amos Tuttle estava na casa, embora não lembrasse então que, muito embora as Híades fossem visíveis agora no leste, naquela época pousavam no oeste. Se havia qualquer diferença na maneira de aproximação, não conseguia discernir, a não ser o fato de que os distúrbios pareciam de certa forma mais próximos, mas era menos uma proximidade física que uma proximidade psíquica. Esta convicção era tão forte, que comecei a sentir um crescente desconforto, sem dúvida misturado ao medo; comecei a experimentar uma inquietude selvagem, um desejo por companhia; e corri rapidamente para a porta de meu quarto, abri-a e passei logo para o corredor, buscando meu anfitrião.


Mas agora, uma nova descoberta se revelava. Enquanto estava no meu quarto, os sons que ouvira pareciam inquestionavelmente vir do leste, não obstante os leves e quase intangíveis tremores parecerem sacudir por toda a casa velha; mas ali, na escuridão do corredor, onde havia parado sem qualquer tipo de luz, fiquei ciente de que os sons e tremores emanavam de alguma parte abaixo – não de qualquer lugar na casa, mas abaixo dela – ascendendo como que de lugares subterrâneos. Minha tensão nervosa aumentou, e fiquei ali incerto, tentando perceber o que acontecia no escuro, quando percebi, na direção da escada, uma tênue radiância, vinda de baixo. Fui em sua direção, sem fazer ruídos, e ao olhar por sobre o corrimão, vi que a luz vinha de um lampião elétrico na mão de Paul Tuttle. Ele estava em pé, no corredor inferior, vestido de roupão, embora ficasse claro, mesmo de onde eu estava, que ele não havia removido suas roupas anteriores. A luz que caía sobre seu rosto revelava a intensidade de sua atenção; sua cabeça se voltava um pouco para o lado, em atitude de audição, e ele ficou ali imóvel, enquanto eu o observava de cima.


“Paul!” Chamei num sussurro rouco.


Ele olhou para cima e instantaneamente viu meu rosto, sem dúvida pego pela luz de seu lampião. “Consegue ouvir?” ele perguntou.


“Sim – o que, em nome de Deus, é isso?”


“Já ouvi isso antes,” respondeu. “Desça.”


Fui até o corredor inferior, onde pro um momento fiquei sob seu olhar penetrante e questionador.


“Não está com medo, Haddon?”


Balancei minha cabeça negativamente.


“Então venha comigo.”


Virou-se e foi pelo caminho que levava aos fundos da casa, onde desceu até os porões. Durante esse tempo, os sons aumentaram de volume; era como se estivessem chegando perto da casa, de fato, quase como se estivessem diretamente abaixo, e agora havia um tremor óbvio e definitivo no prédio, não apenas nas paredes e suportes, mas no tremelique e calafrio da própria terra ao redor; era como se algum distúrbio das profundezas subterrâneas houvesse escolhido aquele ponto na superfície da terra para manifestar-se. Mas Tuttle não parecia abalado com aquilo, pois sem dúvida havia passado pelo fenômeno anteriormente. Passou direto pelo primeiro e segundo porões, chegando a um terceiro, colocado um tanto abaixo dos outros, e aparentemente uma construção recente, mas como os outros dois, construído a partir de blocos de calcário em cimento.


No centro deste subporão, fez uma pausa e ficou quieto, escutando. Os sons, naquele momento, haviam chegado a uma tal intensidade que parecia que a casa fora pega num vórtice de atividade vulcânica, mas sem sofrer de fato a destruição dos suportes; pois o tremor e os movimentos, o estalido e arrastar das vigas sobre nós deu-nos evidência da tremenda pressão exercida dentro da terra abaixo de nós, e mesmo o chão de pedra do porão parecia vivo sob meus pés descalços. Mas neste momento os sons pareceram voltar a um pano de fundo, embora na verdade não tenham de fato diminuído, e apenas ilusoriamente pareceram assim devido à nossa crescente familiaridade com eles, e porque nossos ouvidos estavam prestando uma atenção a outros sons, ressoando em claves maiores, estes também ascendendo do subterrâneo, como se vindos de grande distância, mas carregando consigo um caráter infernal insidioso nas implicações que cresciam ao nosso redor.


Pois os sons de assobio que ouvíamos não eram claros o suficiente para justificar qualquer inferência de suas origens, e foi somente ao passar algum tempo escutando que ocorreu-me que os sons que passavam por um bizarro assobio ou lamúria derivavam de algo vivo, algum ser consciente, pois podiam ser compreendidos como murmúrios chocantes e grosseiros, indistintos e ininteligíveis, mesmo quando eram claramente audíveis. Nesta vez, Tuttle pôs o lampião no chão e ajoelhou-se, pondo o ouvido próximo da pedra.


Imitando seus movimentos, descobri que os sons vindos de abaixo eram reconhecíveis como sílabas, embora não menos sem sentido. Pois primeiramente não ouvi nada que não ululações incoerentes e aparentemente desconexas, então interpoladas com sons de cantoria, que seriam mais tarde identificadas por mim como o seguinte: Iä! Iä!... Shub-Niggurath... Ugh! Cthulhu fhtagn! Iä! Iä! Cthulhu!


Mas logo percebi que havia errado quanto a pelo menos um desses sons. A palavra Cthulhu era bastante audível, apesar da fúria dos sons que nos cercavam; mas a palavra que a seguia era um tanto mais longa que fhtagn; era como se uma sílaba extra fosse adicionada, e ainda assim não podia ter certeza de que não fora cantada sempre assim, pois acabou soando mais clara, e Tuttle tirou de seu bolso um caderno e um lápis e escreveu:


“Estão dizendo, Cthulhu naflfhtagn.”


A julgar pela expressão de seus olhos, levemente dilatados, isto evidentemente lhe revelava algo, mas para mim, não queria dizer nada, além de minha habilidade de reconhecer uma porção como idêntica às palavras que apareciam no abominado Texto de R'lyeh, e subsequentemente mais uma vez na história da revista, onde sua tradução parecia indicar que as palavras significavam: Cthulhu espera sonhando. Minha óbvia e vazia ignorância de seu significado aparentemente lembrou meu anfitrião de que sua erudição filológica era muito maior que a minha, pois sorriu de modo macabro e sussurrou, “Não passa de uma construção negativa.”


Mesmo neste ponto não compreendi que ele tentava explicar que as vozes subterrâneas não estavam dizendo o que eu pensava, mas isto: Cthulhu não está mais dormindo! Agora não havia mais como questionar a crença, pois as coisas que estavam ocorrendo não eram de origem humana, e não admitiam outra solução do que alguma que não fosse, mesmo que remotamente, relacionada à incrível mitologia que Tuttle havia há pouco me exposto. E agora, como se esta evidência de sentimento e audição não fosse suficiente, manifestou-se um estranho e fétido odor, misturado a um cheiro nauseabundo e forte de peixe, aparentemente escapando pela porosa pedra calcária.


Tuttle percebeu isto quase simultaneamente a mim, e fiquei alarmado ao observar em suas feições traços de apreensão que antes não havia notado. Por um momento ele ficou quieto; depois levantou-se furtivamente, tomou do lampião e saiu do porão, levando-me a segui-lo.


Só então, quando estávamos mais uma vez no andar de cima, ele aventurou-se a falar. “Estão mais próximos do que eu pensava,” disse ele, pensativo.


“Seria Hastur?” Perguntei nervosamente.


Mas ele balançou a cabeça. “Não pode ser, porque a passagem abaixo leva apenas ao mar, e sem dúvida está parcialmente alagada. Portanto pode ser apenas um dos Seres da Água – aquelees que refugiaram-se por aqui quando os torpedos destruíram o Recife do Diabo, além da temida Innsmouth – Cthulhu, ou aqueles que o servem, como os Mi-Go o servem nos espaços gélidos, e o povo Tcho-Tcho o servem nos ocultos platôs da Ásia.”


Já que era impossível dormir, sentamos por um tempo na biblioteca, enquanto Tuttle falava quase cantando sobre as estranhas coisas que havia descoberto nos velhos livros que haviam sido de seu tio: esperamos sentados pela aurora enquanto ele falava do temido Platô de Leng, do Bode Negro das Florestas e suas Mil Crias, de Azathoth e Nyarlathotep, Poderoso Mensageiro que andava pelos espaços estelares exibindo o semblante de homem; do horrível e diabólico Símbolo Amarelo, das torres fabulosas e assombradas da misteriosa Carcosa; dos terríveis Lloigor e do odiado Zhar; de Ithaqua, a Coisa da Neve, de Chaugnar Faugn e N'gha-Kthun, da desconhecida Kadath e dos Fungos de Yuggoth – de modo que ele falou por horas, enquanto os sons abaixo continuavam e eu sentado ouvia, imerso num medo beirando o terror. E mesmo assim esse medo era desnecessário, pois na aurora, as estrelas empalideceram e o tumulto abaixo morreu de súbito, afastando-se para o leste e para as profundezas do oceano, fazendo com que eu fosse para meu quarto com ansiedade, para vestir-me em preparo de minha saída.






IV


Em pouco mais de um mês, mais uma vez estava eu na propriedade Tuttle, vindo de Arkham, respondendo a um chamado urgente de Paul, em cujo cartão ele havia rabiscado, com o punho trêmulo, uma única palavra: Venha! Mesmo que não houvesse escrito isto, eu já estava considerando ser meu dever retornar à velha casa da Estrada Aylesbury, apesar de meu desagrado pela pesquisa de Tuttle, que abalava minha alma, e do meu agora ativo medo, que não podia mais evitar. Ainda assim, vinha procrastinando, desde que tomara a decisão de tentar dissuadir Tuttle a afastar-se das pesquisas, até a manhã do dia em que seu cartão chegou. Naquela manhã eu vira no jornal Transcript uma reportagem confusa de Arkham: não haveria notado nada, se não fosse pela pequena manchete, que me capturou o olhar: Ultraje no Cemitério de Arkham, e logo abaixo: Cripta dos Tuttle Violada. A reportagem era breve, e revelava muito pouco além da informação já transmitida pelas manchetes:


Descobriu-se cedo nesta manhã que vândalos invadiram e destruíram parcialmente a cripta dos Tuttle, no cemitério de Arkham. Uma das paredes foi esmagada de maneira quase irreparável, e os caixões foram perturbados. Foi reportado que o caixão do falecido Amos Tuttle está desaparecido, mas havia confirmação do fato quando da impressão deste número.


De imediato, ao ler o vago boletim, foi assaltado pela mais forte das apreensões, vinda não se sabe de que lugar; ainda assim eu sentia que o ultraje perpetrado contra a cripta não era um crime comum, e não conseguia deixar de conectá-lo, em minha cabeça, com as ocorrências na velha casa dos Tuttle. Resolvi portanto ir até Arkham e assim ver Paul Tuttle, antes da chegada de seu cartão; sua breve mensagem alarmou-me mais ainda, se é que isso é possível, e ao mesmo tempo convenceu-me do que temia – que alguma revoltante conexão existia entre o ultraje no cemitério e as coisas que andavam na terra sob a casa da Estrada Aylesbury. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma profunda relutância em deixar Boston, obcecado por um medo intangível do perigo invisível que viria de uma fonte desconhecida. Ainda assim, o dever compelia minhas viagens, e por mais forte que fosse a sensação eu deveria pô-la de lado e ir até Arkham.


Cheguei na cidade no começo da tarde e fui logo ao cemitério, na capacidade de procurador, avaliar a extensão dos danos. Uma guarda policial fora estabelecida, mas recebi permissão de examinar o local, tão logo minha identidade fora averiguada. O registro do jornal, logo descobri, havia sido chocantemente inadequado, pois a ruína da cripta Tuttle fora virtualmente completa, seus caixões expostos ao calor do sol, alguns deles quebrados, revelando ossos há muito mortos. Embora fosse verdade que o caixão de Amos Tuttle havia desaparecido na noite, fora encontrado, ao meio-dia, num campo aberto a cerca de três quilômetros a leste de Arkham, longe demais da estrada para ter sido carregado até ali; e o mistério de estar ali tornou-se então, mais profundo do quando encontraram o caixão; pois uma investigação descobriu certos sulcos profundos na terra, postos a amplos intervalos, alguns deles de mais de um metro de diâmetro! Era como se alguma monstruosa criatura houvesse andado ali, embora eu confesse que este pensamento ocorreu apenas em minha cabeça; as impressões na terra permaneceram um mistério sobre o qual nenhuma luz foi lançada, mesmo pelas suspeitas mais imaginativa quanto à sua fonte. Isto pode ter sido em parte devido ao fato mais aterrador que ficou claro tão logo após a descoberta do caixão: o corpo de Amos Tuttle havia sumido, e uma busca nas cercanias falhou em encontrá-lo. Descobri isso tudo do custódio do cemitério, antes de pôr-me a caminho da Estrada Aylesbury, recusando-me a pensar mais sobre essas incríveis informações, até que houvesse falado com Paul Tuttle.


Desta vez, minha chamada na porta não foi atendida de imediato, e comecei a imaginar, com alguma apreensão, se algo havia acontecido com ele, quando detectei um leve som de arrastar por trás da porta, e quase que imediatamente depois ouvi a voz abafada de Tuttle.


“Quem é?”


“Haddon,” respondi, e ouvi o que parecia ser um engasgo de alívio.


A porta se abriu, e até que ela se fechasse novamente não consegui perceber a escuridão noturna do corredor, vendo depois que a janela no outro extremo estava fortemente fechada, e que nenhuma luz caía sobre o longo corredor, vinda de algum dos aposentos para os quais o corredor dava. Proibi-me de perguntar a questão que estava na ponta da língua e ao invés disso voltei-me para Tuttle. Levou algum tempo para que meus olhos dominassem a escuridão antinatural o suficiente para percebê-lo, e somente então fui abalado por uma sensação distinta de choque: pois Tuttle havia mudado de um homem alto e ereto, na flor de seus anos, para um homem curvado e pesado, de aparência descuidada e levemente repulsiva, traindo uma idade que na verdade ultrapassava a sua. E suas primeiras palavras encheram-me de um grande alarme.


“Rápido, rápido, Haddon,” disse ele. “Não há muito tempo.”


“O que foi? Alguma coisa errada, Paul?” Perguntei.


Sem responder, levou-me até a biblioteca, onde um lampião elétrico queimava tênue. “Fiz um pacote de alguns dos livros mais valiosos de meu tio – o Texto de R'lyeh, o Livro de Eibon, os Manuscritos Pnakóticos – e mais alguns outros. Estes devem ser entregues à biblioteca da Universidade Miskatonic, por suas mãos, hoje, a todo custo. Devem portanto ser considerados propriedade da biblioteca. E aqui está um envelope contendo certas instruções para você, em caso de eu não conseguir entrar em contato, seja pessoalmente ou por telefone – que já instalei aqui desde sua última visita – às dez da noite de hoje. Você vai ficar, eu presumo, na Lewiston House. Agora preste bastante atenção: se eu não ligar para você antes das dez da noite de hoje, deve seguir as instruções contidas aqui, sem hesitação. Aconselho que aja imediatamente e, caso as ache muito incomuns e isso o impeça de agir com presteza, já telefonei ao Juiz Wilton e expliquei que deixei algumas instruções estranhas, porém cruciais, com você, e que as quero cumpridas ao pé da letra.”


“O que foi que aconteceu, Paul?” Perguntei.


Por um momento parecia que ele falaria livremente, mas apenas balançou a cabeça e disse, “Por enquanto, não sei de tudo. Mas isto posso adiantar: nós dois, eu e meu tio, cometemos um terrível engano. E temo que seja tarde demais para corrigi-lo. Você soube do desaparecimento do corpo de Tio Amos?”


Assenti, confirmando.


“Pois ele já apareceu.”


Fiquei impressionado, pois acabara de vir de Arkham, e nenhuma informação do tipo me havia sido passada. “Impossível!” Exclamei. “Ainda estão procurando por ele.”


“Ah, não importa,” ele disse de maneira esquisita. “Não está por lá. Está aqui – aos pés do jardim, onde foi abandonado, uma vez que o julgaram inútil.”


Neste ponto, de súbito sacudiu a cabeça para cima, e ouvimos arrastares e roncos, vindos de alguma parte da casa. Mas rapidamente pararam, e Paul voltou-se para mim.


“O refúgio,” murmurou, dando então uma risada doentia. “O túnel foi construído pelo Tio Amos, tenho certeza. Mas não era o refúgio que Hastur desejasse – embora sirva aos lacaios de seu meio-irmão, o Grande Cthulhu.”


Era quase impossível perceber que o sol brilhava lá fora, pois a escuridão no aposento e a atmosfera de terror iminente posta sobre mim combinaram-se para dar à cena uma irrealidade bastante distante do mundo de onde eu acabara de vir, apesar do horror daquela cripta violada. Percebi também em Tuttle um ar de expectativa quase febril, unido a uma pressa nervosa; seus olhos brilhavam de maneira esquisita e pareciam mais proeminentes que antes, seus lábios pareciam ter ficado ásperos e grosseiros, e sua barba estava emaranhada a um ponto que eu não julgaria antes possível. Ele ouviu por apenas um momento antes de voltar-se novamente para mim.


“Eu preciso ficar aqui; não terminei de minar o lugar, e isto deve ser feito,” voltou a falar de modo errático, continuando antes que a pergunta que me incomodava pudesse ser pronunciada. “Descobri que a casa jaz sobre algum alicerce artificial natural, e creio que estas cavernas em parte estão inundadas – e talvez sejam habitadas,” adicionou como um posfácio sinistro. “Mas isto, claro, agora é de pouca importância. Não tenho medo imediato do que se encontra abaixo, mas daquilo que está por vir.”


Mais uma vez ele pausou para ouvir, e mais uma vez sons vagos e distantes chegaram a meus ouvidos. Ouvi com atenção, percebendo apalpadelas ominosas, como se alguma criatura estivesse testando uma porta, e tentei descobrir ou adivinhar de onde vinha o som. Pensei a princípio que o som emanava de algum lugar da casa, e quase que instintivamente me veio a ideia do sótão; pois parecia vir de cima, mas num momento fiquei certo de que o som não derivava de lugar algum dentro da casa, nem de qualquer porção da casa do lado de fora, mas crescia de um lugar além, de um ponto no espaço além das paredes da casa – um ruído de apalpadelas e puxões que não conseguia se associar, em minha consciência, a qualquer som material reconhecível, mas a uma invasão extraterrena. Observei Tuttle, e vi que sua atenção também estava voltada para o exterior, pois sua cabeça estava de certa forma levantada e seus olhos buscavam além das paredes circundantes, exibindo uma expressão curiosamente extasiada, embora não despida de medo, e não despida de um estranho ar de espera fatalista.


“É o símbolo de Hastur,” disse numa voz sussurrante. “Quando ascenderem as Híades e Aldebarã espreitar o céu noturno, Ele virá. O Outro também estará aqui, com Seu povo aquático, das raças escamosas primevas.”


E então começou subitamente a rir, sem fazer sons, apenas balançando, e num olhar arisco e meio insano, adicionou, “E Cthulhu e Hastur lutarão aqui pelo refúgio, enquanto o Grande Órion passa pelo horizonte, lá onde está Betelgeuse dos Deuses Anciões, somente eles podem impedir os planos malignos dessas crias do inferno!”


Meu espanto diante de suas palavras sem dúvida ficou patente em meu rosto, e por sua vez fê-lo compreender o tamanho da hesitação chocada e da dúvida que eu sentia, pois alterou sua expressão de maneira abrupta, suavizando os olhos, torcendo e destorcendo as mãos, e tornando a voz um tanto mais natural.


“Mas talvez isto o canse, Haddon,” disse. “Não falarei mais, pois o tempo é curto, o crepúsculo se aproxima, e pouco depois a noite. Imploro que não discuta quanto a seguir as instruções que delineei para você nesta breve nota. Minhas ordens devem ser seguidas cegamente. Se for como eu temo, pode ser que nem mesmo elas sirvam para alguma coisa; e se for o caso eu o contatarei a tempo.”


Com isto pegou o pacote de livros, colocou-o em minhas mãos, e levou-me até a porta, para onde segui sem protestos, pois estava atônito e certamente desarmado pela estranheza das ações de Paul, pela atmosfera sinistra de horror crescente que se acumulava naquela antiga e ameaçadora casa.


Na soleira da porta, fez uma breve pausa e segurou com leveza meu braço. “Adeus, Haddon,” disse com intensidade amigável.


Vi-me então na varanda, sob os raios do sol que baixava, tão luminoso que cheguei a fechar os olhos, até que pudesse mais uma vez acostumar-me ao seu brilho, enquanto o riso alegre de um pássaro azul, sozinho na cerca da estrada, soava prazerosamente em meus ouvidos, como se para me ajudar a deixar para trás aquela atmosfera de medo sombrio e horror sobrenatural.






...CONTINUA...

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