terça-feira, 26 de junho de 2012

O ERRANTE DAS ESTRELAS

ROBERT BLOCH
(Dedicado a H. P. Lovecraft)
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'.




I


Eu sou o que professo ser – um escritor de ficção bizarra. Desde a mais tenra infância, fui escravizado pela enigmática fascinação do desconhecido e do indecifrável. Os medos sem nome, os sonhos grotescos, os caprichos mórbidos e quase intuitivos que assombram nossas mentes, sempre causaram em mim um prazer potente e inexplicável.


Na literatura, tenho caminhado pelas trilhas da meia-noite com Poe, ou furtivamente andado pelas sombras com Machen; esquadrinhado os reinos das estrelas horrendas com Baudelaire, ou imerso na loucura interna da terra, entre as histórias da sabedoria antiga. Um talento medíocre em esboços e trabalho com crayon levou-me a tentar rudes pinturas envolvendo os habitantes alienígenas de meus pensamentos noturnos. O mesmo tipo soturno de intelecto que atraiu-me na arte interessava-me nos obscuros reinos da composição musical; as melodias sinfônicas da Suíte dos Planetas e coisas do gênero eram as minhas favoritas. Minha vida interna logo tornou-se um banquete macabro de horrores sobrenaturais e irresistíveis.


Minha existência mundana era comparativamente morna. Conforme passava o tempo, encontrei-me caindo cada vez mais na vida de um recluso pobretão; uma existência tranquila e filosófica entre um mundo de livros e sonhos. 


Mas um homem tem de viver. Por natureza constitucional e espiritualmente averso ao trabalho manual, a princípio fiquei confuso diante da escolha de uma vocação adequada. A depressão complicou as coisas a um grau quase intolerável, e por um certo tempo, estive perto do total desastre econômico. Foi então que decidi escrever.




Procurei uma máquina de escrever gasta, uma resma de papel barato, e alguns papéis carbono. Que melhor campo, se não os reinos infinitos da imaginação colorida? Poderia escrever sobre horror, medo, e sobre o enigma que é a Morte. Pelo menos, na insensibilidade de minha falta de sofisticação, era isto que eu tencionava.


Minhas primeiras tentativas logo convenceram-me de quão completamente eu havia falhado. Triste e miseravelmente, não havia atingido minha meta aspirada. Meus vívidos sonhos, no papel, tornavam-se amontoados sem sentido de adjetivos ponderosos, e não encontrei palavras comuns para expressar o terror maravilhado do desconhecido. Meus primeiros manuscritos eram documentos miseráveis e fúteis; as poucas revistas que utilizaram tais materiais foram unânimes em sua rejeição.


Mas eu tinha de viver. De forma lenta, mas constante, comecei a ajustar meu estilo às minhas ideias. Laboriosamente, experimentei com palavras, frases, estruturas de sentenças.  Era um trabalho, e um trabalho duro. Logo aprendi a me esforçar. Todavia finalmente uma de minhas histórias foi bem recebida; e então uma segunda, uma terceira e uma quarta. Logo, tive de começar a dominar os truques mais óbvios da área, e o futuro enfim parecia mais brilhante. Foi com a mente menos carregada que voltei à minha vida de sonhos e a meus amados livros. Minhas histórias rendiam-me um viver um tanto apertado, e o por um tempo isto foi suficiente. Mas não por muito tempo. A ambição, essa ilusão eterna, foi a causa de minha ruína.


Almejava escrever uma história real; não do tipo estereotipado e efêmero que aparecia nas revistas, mas uma obra de arte real. A criação de uma obra-prima assim tornou-se meu ideal. Eu não era um bom escritor, mas isto não se devia totalmente a meus erros no estilo mecânico. Na verdade, a falha estava no meu assunto abordado. Vampiros, lobisomens, carniçais, monstros mitológicos – estas coisas constituíam material de parco mérito. Imagética de lugar-comum, tratamento adjetival corriqueiro, e um ponto de vista prosaicamente antropocêntrico eram os principais detrimentos na produção de uma boa história bizarra.


Devo buscar novos assuntos, material de tramas verdadeiramente incomum. Se pelo menos pudesse conceber algo que fosse teratologicamente inacreditável!


Ansiava aprender as canções que os demônios cantam quando rodopiam entre as estrelas, ou ouvir as vozes dos deuses mais antigos quando sussurram seus segredos ao vazio ecoante. Almejava conhecer os terrores do túmulo; o beijo das larvas em minha língua, a fria carícia de uma mortalha apodrecida sobre meu corpo. Tinha sede do conhecimento encontrado nos poços de olhos mumificados, e queimava pela sabedoria conhecida apenas pelo verme. E então poderia de fato  escrever, e ter minhas esperanças genuinamente realizadas.




Busquei uma forma. Quietamente, comecei a trocar correspondências com pensadores e sonhadores isolados, de todo o país. Havia um eremita nas colinas a oeste, um sábio nas florestas ao norte, um sonhador místico na Nova Inglaterra. Foi deste último que aprendi sobre os antigos livros que detém estranha sabedoria. Ele citava reservadamente o lendário Necronomicon, e falava timidamente de um certo Livro de Eibon, que tinha a reputação de superar o primeiro no caráter totalmente selvagem de suas blasfêmias. O místico em si havia sido estudante desses volumes de temor primordial, mas não gostava da ideia de me ver pesquisando longe demais. Ele ouvira muitas coisas estranhas quando garoto na cidade de Arkham, assombrada pelas bruxas, onde as antigas sombras ainda espreitam e caminham furtivas, e desde então havia sabiamente evitado o conhecimento mais sombrio e proibido.


Após muita pressão de minha parte, ele relutantemente consentiu em prover-me os nomes de certas pessoas que considerava aptas a ajudar em minha busca. Ele era escritor de notável brilhantismo e ampla reputação entre os poucos relevantes, e eu sabia que ele estava avidamente interessado no resultado da demanda em si.


Tão logo sua preciosa lista chegou em minhas mãos, comecei uma ampla campanha postal para obter acesso aos volumes desejados. Minhas cartas atingiram universidades, bibliotecas privadas, videntes famosos e os líderes de cultos cuidadosamente ocultos e obscuramente designados. Mas estava fadado ao desapontamento.


As réplicas que recebia eram definitivamente inamistosas, quase hostis. Ficava evidente que os falados possuidores de tais conhecimentos ficaram irritados com a ideia de seus segredos assim revelados por um espião estranho. Fui subsequentemente alvo de várias ameaças por carta, e pelo menos uma chamada telefônica alarmante. Isto não me incomodou mais que a percepção desapontadora de que minhas empreitadas haviam falhado. Negativas, evasões, recusas, ameaças – estas coisas não me ajudariam. Deveria buscar em outra parte.


Livrarias! Talvez em alguma prateleira embolorada e esquecida pudesse descobrir o que buscava.


Comecei então uma interminável cruzada. Aprendi a suportar meus numerosos desapontamentos com uma calma inabalável. Ninguém no tipo comum de livraria parecia jamais ter ouvido falar do temível Necronomicon, no maligno Livro de Eibon, ou no inquietante Cultes des Goules.


A persistência traz resultados. Numa pequena e velha livraria da South Dearborn Street, entre prateleiras empoeiradas aparentemente esquecidas pelo tempo, cheguei ao fim de minha busca. Ali, seguramente encaixado entre duas edições de Shakespeare datadas de dois séculos, estava um grande volume negro, com adornos protetores de ferro. Sobre ele, em letra manuscrita, estava a inscrição De Vermis Mysteriis, ou, “Os Mistérios do Verme.”


O proprietário não sabia dizer como foi que aquele livro havia chegado a sua posse. Anos antes, talvez, tenha sido incluído em algum lote variado, de segunda mão. Obviamente não estava ciente de sua natureza, já que eu o comprei por apenas um dólar. Ele embalou para mim a ponderosa coisa, bastante satisfeito com a venda inesperada, e me deu um satisfeito bom-dia.






Saí apressadamente, meu preciso prêmio sob o braço. Que descoberta! Havia ouvido falar antes deste livro. Ludvig Prinn era seu autor, que havia perecido na fogueira inquisitorial em Bruxelas, quando os julgamentos das bruxas estavam em seu auge. Um estranho personagem – alquimista, necromante, reputadamente um mago – gabava-se de ter chegado a uma idade miraculosa, quando finalmente sofreu a imolação flamejante nas mãos do braço secular. Dizia ele ser o único sobrevivente da malfadada Nona Cruzada, exibindo como prova certos documentos embolorados que o atestavam. É verdade que um certo Ludvig Prinn estava entre os cavalheiros vassalos de Montserrat, nas mais antigas crônicas, mas os incrédulos rotularam Ludvig como um impostor insano, embora talvez um descendente direto do guerreiro original.


Ludvig atribuía seu aprendizado feiticeiro aos anos que passara cativo entre os magos e taumaturgos da Síria, e falava longamente dos encontros com os gênios e efreets da mitologia do Oriente Médio. Sabe-se que ele passou algum tempo no Egito, e existem lendas entre os dervixes líbios falando dos feitos do velho vidente em Alexandria.


De qualquer forma, seus dias de declínio foram passados no país flamingo das terras baixas, onde havia nascido e onde residia, apropriadamente, nas ruínas de uma tumba pré-romana erguida na floresta próxima a Bruxelas. Ludvig tinha a reputação de habitar ali entre um enxame de familiares e conjurações temerariamente invocadas. Os manuscritos ainda existentes falam dele de maneira reservada, como sendo atendido por “companheiros invisíveis” e “servos vindos das estrelas.” Os camponeses evitavam a floresta à noite, pois não gostavam de certos ruídos que ressoavam sob a lua, e muito certamente não estavam ansiosos de ver o que andava venerando nos velhos altares pagãos que erodiam em certos bosques mais soturnos.


Qualquer que seja a verdade, essas criaturas que ele comandava jamais foram vistas após a captura de Prinn pelos lacaios inquisitoriais. Os soldados perseguidores encontraram a tumba totalmente deserta, muito embora tenha sido saqueada nos mínimos detalhes, antes de sua destruição. As entidades sobrenaturais, os instrumentos e componentes incomuns – todos haviam curiosamente desaparecido. Uma busca nas florestas proibidas e um exame temeroso dos estranhos altares não adicionou informação alguma. Haviam manchas frescas de sangue nos altares, e também na roda de tortura, antes do fim das sessões de questionamento de Prinn. Uma série de torturas particularmente atrozes falharam em suscitar quaisquer revelações adicionais do mago silencioso, e depois de muito os exaustos interrogadores cessaram de tentar e lançaram o envelhecido feiticeiro numa masmorra.




Foi na prisão, enquanto aguardava o julgamento, que escreveu as linhas mórbidas e pressagiosas de horror do De Vermis Mysteriis, conhecido hoje como Mistérios do Verme. Como ele fora contrabandeado para além dos guardas atentos foi em si um mistério, mas um ano após sua morte ele foi impresso em Cologne. Foi imediatamente suprimido, mas umas poucas cópias já haviam sido distribuídas em privado. Estas por sua vez foram transcritas e embora houvesse uma impressão posterior, censurada e deletada, apenas o original em latim é aceito como genuíno. No decorrer dos séculos apenas uns poucos eleitos houveram lido e ponderado sobre seus conhecientos. Os segredos do velho arquimago são conhecidos hoje apenas pelos iniciados, e estes descorajam quaisquer tentativas de espalhar sua fama, movidos por certas razões bastante definidas.


Era isto, em resumo, o que eu sabia da história do volume, na época em que ele me caiu nas mãos. Como item de colecionador, apenas, o livro era uma descoberta fenomenal, mas quanto a seus conteúdos, não poderia fazer avaliação. Estava em latim. Já que posso falar ou traduzir apenas umas poucas palavras desse idioma erudito, fui confrontado por uma barreira, tão logo abri as páginas emboloradas. Era enlouquecedor ter tal cofre do tesouro de conhecimento obscuro ao meu dispor e ainda assim carecer da chave que o abriria.


Por um momento entrei em desespero, pois estava indisposto a abordar algum erudito clássico ou entendido em latim, portando livro tão horroroso e blasfemo. Veio então a inspiração. Por que não ir a leste buscar a ajuda de meu amigo? Ele era estudante dos clássicos e estaria menos propenso a ficar chocado com os horrores das revelações nocivas de Prinn. Portanto enderecei a ele uma carta ansiosa, e logo após recebi minha resposta. Ele teria prazer em ajudar-me – eu devia apressar-me em ter com ele.








II


Providence é uma cidade adorável. A casa de meu amigo era antiga e esquisitamente georgiana. O primeiro piso era uma joia da atmosfera colonial. O segundo sob antigos telhados de duas águas que sombreavam a imensa janela, serviam como escritório para meu anfitrião.


Foi ali que ponderamos naquela noite lúgubre e fatídica de fim de abril; ali sob a janela aberta que contemplava o mar azul. Era uma noite sem lua; opressiva e melancólica com sua bruma que enchia a escuridão de sombras quirópteras. Em minha mente posso ainda vê-lo – o minúsculo aposento iluminado por lampião, com uma grande mesa e as cadeiras de espaldar alto; prateleiras delimitando as paredes; manuscritos estocados em arquivos especiais.


Eu e meu amigo sentamos na mesa, com o misterioso volume diante de nós. Seu perfil magro jogava uma perturbadora sombra na parede, e seu rosto de cera era furtivo à luz pálida. Havia um inexplicável ar de portentosa revelação, bastante perturbador em sua potência; eu pressentia a presença de segredos querendo ser revelados.




Meu companheiro também o detectara. Longos anos de experiência ocultista haviam aguçado sua intuição a um espantoso grau. Não fora o frio que o fizera tremer ao sentar na cadeira; não foi a febre que fez seus olhos flamejarem como fogos incrustados como joias. Ele sabia, mesmo antes de abrir o amaldiçoado tomo, que este era malévolo. O cheiro embolorado que sabia daquelas páginas antigas carregava consigo os miasmas da tumba. As folhas estavam mordidas de traças nas bordas, e os ratos haviam roído o couro da capa; ratos que talvez tivessem uma comida mais sórdida como sua ração comum.


Havia contado a meu amigo a história do volume naquela tarde, e desembrulhado o tomo em sua presença. Senti então que ele estava ávido e disposto a uma tradução imediata. Mas agora, punha dificuldades e objeções.


Não seria sábio, insistia ele. Aquele era um conhecimento maligno – quem poderia dizer que segredos temidos até pelo demônio continham aquelas páginas, ou que males poderiam cair sobre o ignorante que buscasse brincar com seu conteúdo? Seria bom não aprender tanto, e homens já haviam morrido por exercer a sabedoria pútrida que aquelas folhas continham. Meu amigo implorou-me para abandonar a busca, enquanto o livro ainda permanecia sem ser aberto, pedindo-me que buscasse minha inspiração em coisas menos insalubres.


Fui um tolo. Desfiz suas objeções com palavras rápidas, vãs e vazias. Eu não tinha medo. Que pelo menos contemplássemos os conteúdos de nosso prêmio. Comecei a virar as páginas. O resultado foi desabonador. Era, afinal de contas, um volume de aparência comum – folhas amareladas e apodrecidas cheias de textos em latim, escritos com letras negras. Isto era tudo; sem ilustrações nem desenhos alarmantes.


Meu amigo não conseguiu resistir mais ao fascínio de tal guloseima bibliófila. Num momento estava olhando por cima de meu ombro, com atenção, ocasionalmente murmurando trechos de frases em latim. O entusiasmo o dominou, finalmente. Agarrando o precioso tomo com ambas as mãos, sentou-se próximo à janela e começou a ler alguns parágrafos aleatórios, de vez em quando traduzindo-os para o inglês.


Seus olhos cintilavam com uma luz feral; seu perfil cadavérico ficou mais tenso, conforme esquadrinhava aquelas runas mofadas. As sentenças trovejavam numa temível litania, e então decaíam em tons abaixo de um sussurro, conforme sua voz ficava tão suave quanto o sibilar de uma víbora. Compreendi apenas algumas frases aqui e ali, pois em sua introspecção, ele parecia haver esquecido de mim. Estava lendo algo sobre feitiços e encantamentos. Lembro de alusões a certos deuses da adivinhação como o Pai Yig, o sombrio Han, e Byatis de barba de serpentes. Senti calafrios, pois já conhecia esses nomes antigos, mas sentiria ainda mais calafrios se ao menos soubesse o que estava para acontecer.


A coisa aconteceu rápido. Subitamente ele voltou-se para mim com grande agitação, sua voz empolgada num tom estridente. Perguntou-me se eu lembrava das lendas da feitiçaria de Prinn, e das histórias dos servos invisíveis que ele ordenava que descessem das estrelas. Assenti, pouco compreendendo a causa de seu súbito frenesi.


Ele contou-me então a razão. Ali, num capítulo sobre familiares, encontrara uma oração ou feitiço, talvez o mesmo usado por Prinn para convocar seus servos invisíveis de além das estrelas! Deixe-me ouvir o que ele lia.






Sentei ali parvamente, feito um tolo ignorante e estúpido. Por que eu não gritava, tentava escapar, ou arrancava aquele monstruoso manuscrito de suas mãos? Em vez disso sentei ali – sentei enquanto meu amigo, numa voz rebentando de empolgação antinatural, lia em latim uma longa e sonorosamente sinistra invocação.


“Tibi, Magnum Innominandum, signa stellarum nigrarum et bufoniformis Sadoquae sigillum.…”


O ritual grasnante prosseguiu, e então alçou voo nas asas de um horror medonho e noturno. As palavras pareciam contorcer-se, como chamas no ar, queimando meu cérebro. Os tons trovejantes soavam ecos no infinito, além da mais distante das estrelas. Pareciam passar por entre portais primevos e adimensionais, buscando um ouvinte para convocá-lo à terra. Seria tudo aquilo uma ilusão? Não parei para pensar em nada.


Pois a convocação involuntária foi respondida. Mal a voz de meu companheiro se calara, naquele pequeno aposento, veio o terror. O aposento ficou frio. Um súbito vento gritou pela janela aberta; um vento que não era da terra. Trazia um mal que balia de longe, e com esse som, a face de meu amigo tornou-se uma pálida máscara branca de horror recém-desperto. Então houve um rachar nas paredes, e o peitoril da janela ruiu diante de meus olhos arregalados. Daquele nada além da abertura veio uma súbita explosão de gargalhada lúbrica – uma risadaria histérica, nascida da loucura completa e avassaladora. Subiu até a mais casqueante quintessência de todo horror, horror sem uma boca que o proferisse.


O resto aconteceu com apavorante rapidez. Num átimo, meu amigo começou a gritar, perto da janela; gritar e agitar selvagemente as mãos no ar vazio. À luz do lampião, vi suas feições contorcerem-se num esgar de agonia insana. Um momento depois, seu corpo ergueu-se do chão, sem que nada o estivesse segurando, e começou a torcer-se para trás, num ângulo capaz de quebrar-lhe as costas. Um segundo mais tarde, veio o nauseante som de ossos quebrados. Sua forma agora pairava no próprio ar, olhos vidrados e mãos apertando convulsivamente algo que parecia invisível. Mais uma vez atroou o som de escárnio maníaco, mas daquela vez dentro do quarto!


As estrelas moviam-se numa angústia vermelha; o vento frio matraqueava em meus ouvidos. Aninhei-me em minha cadeira, olhos pregados naquela espantosa cena. Meu amigo agora estava guinchando; seus gritos misturavam-se à exultante e atroz gargalhada que vinha do ar vazio. Seu corpo pendurado, pendulando no espaço, mais uma vez contorceu-se e brotou sangue de seu pescoço rasgado, esguichando como se de uma fonte de rubis.


Esse sangue jamais alcançou o chão. Parou em meio ao ar, e a gargalhada cessou, substituída por um nojento ruído de sucção. Imerso num novo e acelerado horror, percebi que o sangue estava sendo drenado para alimentar a invisível entidade do além! Que criatura do espaço havia sido tão súbita e involuntariamente invocada? O que era aquela monstruosidade vampírica que eu não conseguia enxergar?


Naquele momento uma horrível metamorfose começou a acontecer. O corpo de meu companheiro ficou murcho, emaciado, sem vida. Finalmente foi jogado ao chão e ficou lá, repugnantemente imóvel. Mas no próprio ar, outra mudança, ainda mais macabra, começou a ocorrer.


Um brilho avermelhado encheu o canto da janela – um brilho sangrento. Lenta, mas constantemente, os contornos vagos de uma Presença começaram a se exibir; os contornos sujos de sangue daquele invisível e desengonçado errante das estrelas. Era vermelho e gotejante; uma imensidade de geleia pulsante se movia; uma bolha escarlate e suas miríades de trombas tentaculares, que se mexiam, e se mexiam... Haviam ventosas nas pontas dos apêndices, e estes abriam e fechavam numa volúpia carniceira... A coisa era inchada e obscena; uma massa sem cabeça, nem rosto, nem olhos, de mandíbula voraz e as garras titânicas de um monstro nascido nas estrelas. O sangue humano do qual havia se alimentado revelava os contornos até então invisíveis da coisa que se banqueteava. Não era uma visão própria para olhos de gente sã.


Felizmente para meu estado mental, a criatura não se demorou. Abandonando a coisa morta, cadavérica e mole no chão, com decisão voltou-se para a abertura. Nela desapareceu, e ouvi sua risada zombeteira à distância, flutuando nas asas do vento, enquanto ele reentrava nos abismos de onde havia vindo.


Isto foi tudo. Fui deixado sozinho no aposento, com aquele corpo mole e sem vida a meus pés. O livro havia desaparecido; mas haviam impressões sangrentas na parede, poças de sangue no chão, e o rosto de meu pobre amigo era uma massa sangrenta, que morta fitava as estrelas.


Por um longo período de tempo, sentei sozinho, em silêncio, antes que ateasse fogo ao aposento e a tudo que ele continha. Depois disso, saí correndo, rindo, pois eu sabia que as chamas erradicariam todo traço do que permanecia ali. Havia chegado pouco antes, naquela tarde, e ninguém me conhecia, e ninguém havia me visto, e parti antes que as chamas brilhantes me denunciassem. Tropecei por horas por entre as ruas tortuosas, e rebentava numa gargalhada contínua e idiota toda vez que olhava para as estrelas sempre vigilantes, sempre ardentes, que observavam-me furtivamente através dos rolos de névoa assombrada.


Depois de muito tempo acalmei-me e tomei um trem. Permaneci calmo durante toda a longa jornada para casa, e calmo permaneci enquanto escrevi este relato. Até mesmo permaneci calmo quando li sobre a curiosa morte acidental de meu amigo, no fogo que destruíra sua morada. É somente nas noites em que as estrelas brilham, que os sonhos devolvem-me a um gigantesco labirinto de medos frenéticos. E então me afundo nas drogas, numa vã tentativa de banir essas memórias insistentes de meus sonhos. Mas na verdade não me importo, pois sei que não permanecerei aqui por muito tempo.


Tenho uma curiosa desconfiança de que verei novamente o errante das estrelas. Penso que ele retornará logo, mesmo sem ser convocado de novo, e sei que quando ele vier, me perseguirá e me carregará para a escuridão que abriga meu amigo. Às vezes eu quase anseio pelo advento desse dia, pois nele desvendarei de uma vez por todas os Mistérios do Verme.






The Shambler From the Stars
Originalmente publicado na revista Weird Tales de setembro de 1935.

http://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Bloch

Robert Bloch escreveu este conto com 18 anos e nem mesmo foi o seu primeiro. Recebeu "autorização por escrito" de HP Lovecraft para assassiná-lo na história. Seu estilo mais tarde se desviou do horror cósmico e sua obra mais popular e famosa é "Psicose", que originou o filme hitchcockiano.

2 comentários:

  1. parabéns pelas traduções, sou fã do Lovecraft e dos demais escritores com estilo lovecraftiano!
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